Queen Charlotte's Hospital

Por alguma razão aquele dia foi diferente. Aquele toque foi sempre. Embora a voz tenha sido sempre a mesma. Tinha passado o tempo todo fechado em pesadelos mas quando a voz, a pessoa, chegara e me tocara foi como um bálsamo. Eu estivera prestes a desistir. Prestes a desligar-me. Mas então aquele toque. Oh. 

Foi como levar um choque eléctrico. Por momentos apaguei. No momento seguinte acordei. Acordei realmente pela primeira vez em sei lá quanto tempo.  E junto a mim estava um anjo. Só podia ser um anjo de tão bela que era.

Ainda sentia um formigueiro nos meus lábios quando vi que os seus olhos estavam abertos. Um azul tão intenso e claro como o azul do mar - Acordaste - disse surpreendida com um sorriso de orelha a orelha - Eu vou chamar a enfermeira - avisei.o, tocando no botão de emergência. Não ia deixar de olhar para ele ou ele ainda iria fechar os olhos ou então imaginaria que era só da minha cabeça - Ele está acordado - disse como se fosse algo óbvio quando vi a silhueta de uma enfermeira no meu campo de visão - Eu sou a America

A minha mente estava prestes a entrar em curto-circuito com tanto a assimilar. Mas, estranhamente, nada passava pela minha mente a não ser aquela rapariga tão próximo de mim. Quando ela falou finalmente pude entender de onde vinha a voz. 

Quase estava à espera de voltar a cair no rodopio negro a que estava habituado. Mas isso não aconteceu. Pisquei os olhos várias vezes a ver se tudo isto era rela. Nada desapareceu. America.

Apeteceu-me rir. Não sabia porquê. Nem sabia como reagir. Estava desabituado a falar, a mexer-me. Que raios, estava desabituado de viver. Só me ocorreu dizer algo - you're one hell of a kisser - porque, embora não me tivesse apercebido de como tudo se desenrolara, ao acordar a primeira sensação fora os seus lábios nos meus e a primeira visão a dos seus olhos extremamente azuis.

Então o meu quarto foi invadido por enfermeiros e depois médicos e deixei de ver aquele anjo de olhos azuis.

Num momento estávamos só os dois sozinhos. Queria perguntar.lhe tanta coisa no entanto o quarto encheu.se de médicos e enfermeiros de um lado para o outro, obrigando.me assim a afastar.me. Fiquei no canto do quarto enquanto ouvia os médicos a fazer perguntas e a examiná.lo, não querendo saber de mim - Não faça tantas perguntas, vai baralhá.lo - disse ao médico enquanto marcavam exames e o preparavam para o levar. O que nos tinham ensinado na escola era estarmos calmos perante um paciente que acordara do coma e não sobressaltá.lo de emoções e perguntas porque ele iria estar confuso mas era o oposto do que faziam. Só queriam saber o que acontecera, como acontecera, qual o seu nome, a sua idade, se sabia o dia, o ano, onde estava - Parem! - pedi, elevando a voz

No instante em que o quarto se transformou numa arena de circo, perdi o fio condutor. Se calhar já nem o tinha. A verdade é que, apesar de entender as palavras que me dirigiriam, perdi-me rapidamente no raciocínio e não consegui responder a nada. Comecei a ter dificuldades em respirar. Não porque me doesse algo, mas antes porque tudo aquilo era demais. Era uma cacafonia e eu já me desabituara delas. 

Por momentos tudo se silenciou quando um grito se deu. Embora não a conseguisse ver, sabia que vinha do meu anjo de olhos azuis. A voz. Sorri pela ajuda que me deu mas depressa percebi que havia perdido o controlo de mim próprio novamente. Desmaiei ali mesmo.

- Menina Singer saia do quarto enquanto tratamos do paciente e isto é uma ordem - avisou o médico e eu passei por ele, indo até à cama.

- Eu não saio daqui. Já não me encontro no meu turno, por isso isto é pessoal. Já viu o que aconteceu ? Ele desmaiou! - apontei para ele - Vocês não o podem bombardear com perguntas. - respirei fundo - Não tem salas disponiveis para os exames, quando tiverem voltam e levam.no mas eu não vou sair daqui - falei seriamente, chegando a sentar.me na cadeira

- Amanhã de manhã falamos - ele avisou.me e eu assenti, preparada para aceitar o que fosse mas não podia permitir que o atacassem daquela maneira novamente. Quando finalmente estava a sós com ele, aproximei a cadeira da cama e peguei na sua mão

- Espero que desta vez não fiques inconsciente tanto tempo - murmurei, encostando a cabeça aos braços, acabando por adormecer ao fim de algum tempo.

Daquela vez estava completamente imerso. Nem ouvia os meus pensamentos. Nem ouvia a voz. Este estado inconsciente era diferente do outro. Era pacifico. Eu nem sabia que estava cansado mas ajudou-me sem dúvida a descansar.

Quando precisei de acordar fi-lo sem resistência nenhuma.

Senti movimento na cama, fazendo.me acordar sobressaltada. Felizmente ele estava acordado e fora só um susto - Não te preocupes, não está aqui ninguém para te atacar - sorri, passando a mão pelo cabelo. Estava tão cansada e perdida no tempo que não sabia que horas eram - Sabes como te chamas ? - perguntei enquanto largava a sua mão. Não sabia se ele se sentia confortável por estar a segurar.lhe a mão e preferia dar.lhe o seu espaç

Pisquei os olhos ao acordar. O quarto estava escuro à excepção da luz das máquinas e de uma que provinha de um pequeno candeeiro. Não acordei sozinho. Pelos vistos também acordara a rapariga de olhos azuis. Era lamentável que as luzes estivessem apagadas pois assim não conseguia ver bem os contornos do seu rosto. Mas sentia a sua mão na minha. Ou pelo menos sentia até ela a afastar. Esqueci isso ao aperceber-me da sua pergunta. Nome. Eu devia ter um nome, não? Então porquê que não lhe conseguia responder? - America, certo? - Perguntei fitando-a. Fora a única palavra que ficara fixada na minha mente desde que acordara. - Diria prazer em conhecer-te, mas não me consigo apresentar...Eu não me lembro...uh - Tentei e tentei mas nada vinha à minha mente. Era como se tudo fosse branco. 

- Sim, eu sou a America - liguei a pequena luz de presença em cima da sua cama e sentei.me virada para ele - Hey, não faz mal. Não forces - aconselhei - Tiveste muito tempo em coma, é normal que não te lembres de coisas básicas como o teu nome. Sabes mais alguma coisa sem ser o meu nome ? - questionei enquanto, inconscientemente, brincava com a ponta dos seus dedos. Eu sabia que devia chamar os médicos para o verem mas não queria.. estava a ser egoista e queria aquele momento só para mim

America. O meu anjo de olhos azuis. Por muito foleiro que soasse, parecia a única maneira de a poder considerar. Assim como a única coisa que me conseguia lembrar era do som da sua voz em todos aqueles dias inconsciente. - És médica aqui? - Questionei. Não sabia o que lhe dizer. Estava embaraçado - Acho que não me lembro de nada. Estive em coma? Quanto tempo?  Ainda estamos em 2001..? - Fingi-me sério ao fazer aquela pergunta mas depois quebrei um sorriso.

- Sou estagiária de enfermeira, estou até para a semana nesta zona e depois vou para as emergências - expliquei.lhe sempre com um tom calmo e passivo. Por momentos pensei que a sua memória tinha regredido bastante e ele se tinha esquecido dos últimos 15 anos além dos básicos mas quando vi o seu sorriso percebi que só se estava a meter comigo - Não digas coisas dessas, ainda vais fazer pior para ti - bati.lhe com o joelho na perna e peguei na sua ficha que estava ao fundo da cama - Estiveste em coma quase oito meses. Estamos em 2016 chico esperto. Posso fazer.te umas perguntas e ver se algo ativa a tua memória ou preferes descansar um pouco ? - perguntei. Apesar de ter acordado de um coma a sua cara ou a minha não deviam ser as melhores

- Enfermeira, hun? - Certamente ficava bem de bata.  Porque claramente era neste tipo de cosias que eu pensava após acordar de um coma. Só precisava de um pouco de normalidade na minha mente. - Como assim vais ser transferida? Vou deixar de te ver? - Por alguma razão que eu não compreendia isso perturbava-me. Era de loucos já que esta era só a segunda vez que a via. 

Quase fiquei sem ar quando ela disse que tinha estado em coma oito meses. Tanto tempo? - Não dei pelo tempo passar - Tal como não tinha dado por nada a não ser pela sua voz que me puxara das trevas. Já estava cansado só de pensar nisso mas não queria que ela se fosse embora nem que parasse de falar comigo por isso aceitei responder às suas perguntas embora o sono me puxasse novamente. - Podes dar-me só um copo de água se faz favor?

- Nós estagiários mudamos de posto de três em três semanas - levantei.me e fui até ao armário buscar uma garrafa de água e um copo - Eu estou praticamente há duas semanas aqui, foi quando te "conheci" - expliquei, dando.lhe o copo com um pouco de água - se bem que ia sendo expulsa por causa de uma coisa mas isso não interessa - voltei a sentar.me ao pé dele - se quiseres eu posso continuar a visitar.te enquanto estiveres aqui, tenho.o feito todos os dias de qualquer maneira - sorri envergonhada - O Mason vem para aqui a seguir, tu vais gostar dele - garanti - O tempo para ti passou de maneira diferente, é incrível como acordaste, os médicos já estavam a perder a esperança porque não estava nada de errado contigo

Apenas duas semanas? Parecia que conhecia a sua voz desde há uma eternidade. Mostrava realmente o quão perdido no tempo eu estivera - Não me parece que vá gostar de ter qualquer outra pessoa por aqui sem seres tu - Admiti. Começava a ficar um bocadinho rezingão. - Porquê que ias sendo expulsa? - Questionei esperando uma boa história.

Ri.me, abanando a cabeça - a sério, ele é fantastico mas depois logo me dizes o que achas dele nas nossas sessões - sorri e ajeitei.me na cama - queres mesmo saber ? - perguntei, respirando fundo - é que pode ser um bocadinho traumático uma vez que foi relacionado contigo - expliquei mas ele assentiu e eu preparei.me para reviver aquele momento - acho que foi no primeiro ou segundo dia quando eu cheguei aqui ao UCI, tinha acabado o meu turno e acabado de te ter visitado quando ouve um Code Blue, isto é alguém tinha tido uma paragem cardiaca - deixei de olhar para as minhas maos e olhei para ele - Tu... - mordi o lábio - Eu vim a correr para aqui e os médicos estavam a tentar reanimar.te e já o tinham tentado três vezes e estavam a desistir, eles iam parar e marcar a hora do óbito mas eu neguei.me e meio que saltei para cima da maca e comecei a fazer CPR até que alguém me puxou de cima de ti para me tirar do teu quarto mas tu já tinhas batimentos outra vez - fiz uma careta - como podes ver.. eu sou um pouco estranha

" a sério, ele é fantastico" Fosse esse Mason quem fosse, eu não ia gostar e já estava mesmo a ver que assim seria. - Ele é teu namorado? - Perguntei sem rodeios dado a forma de como ela dizia o seu nome e mostrava entusiasmo.

- O que ? O Mason e eu ? - ri.me - Não. Ele é o meu melhor amigo como um irmão, acho que não o consigo ver como namorado. Estranho - fiz uma careta - ahm.. não é bem assim. Eu apenas não desisti de ti, tal como não desistiria de outro paciente - disse apesar de duvidar um pouco do que dissera. Faria o mesmo que tinha feito com ele ? Será que lutaria tanto por outro paciente como tinha lutado por ele ? Encolhi os ombros - se quiseres podes chamar.me Mer, é o que toda a gente me chama - passei uma mecha de cabelo para trás da orelha - Não olhes assim para mim, não fiz nada demais

Se o que eu estava a sentir eram ciúmes - o que talvez fosse uma ideia ridícula, mas era o que parecia - então estes acalmaram um pouco com a sua resposta, mas mesmo assim não fiquei fã desse tal Mason.

- Ouch, és capaz de me ter ferido o pouco ego que me resta. Ser só mais um paciente e tal... - Tentei fazer a piada mas a minha voz estava tão fraca que não parecia dar resultado. - Mer - Experimentei dizer. Agradava-me. - Se não fosse por ti eles tinham desligado as máquinas. Eu não estaria a respirar.

- Tu não.. é que.. eu.. é diferente - acabei por dizer - não te sei explicar porque é que te defendi com tanta paixão e com tanta certeza que tu ias sobreviver mas foi algo em mim que disse que o ias fazer e eu confio nos meus palpites - encolhi os ombros - Devias descansar, é tarde e precisas de força para amanhã - aconselhei

- Já disse que não tens de agradecer, voltava a faze.lo se acontecesse - falei sinceramente até porque se ele, por alguma razao remota voltasse a ficar em coma, eu voltaria a estar do seu lado e a lutar por ele até ao fim - Se quiseres que eu esteja, eu estou e hoje se quiseres que eu fique, eu fico - pousei a mão sobre a sua e sorri - só tens de o dizer

Eu queria que ela ficasse. Oh sim. Depois de meses de infinita escuridão não queria voltar a acabar isolado e sozinho. No entanto eu ia adormecer e ela estava com ar de quem deveria fazer o mesmo. - Há quanto tempo estás acordada? - Questionei percebendo que ela já devia estar ali há demasiado tempo.

- Estou acordada desde que vim trabalhar - encolhi os ombros, questionando.me porque é que ele me estava a perguntar aquilo - Mas porque é que me estás a perguntar isso ? - arqueei a sobrancelha - Espera ai.. Tu queres que eu fique contigo mas não o queres dizer - sorri