Quarto de Hope

Continuei a andar, começando a apoiar-me na lateral dos prédios por causa do cansaço. - Acho que ninguém me vai reconhecer neste estado mas também porque te importas tanto ? Agora se for apanhada a culpa não é tua, é minha. Não precisas de ficar com peso na consciência. - tentei respirar fundo mas as minhas costelas começavam a ter uma dor insuportável. - Eu só quero estar sozinha - disse-lhe, sentindo-me derrotada

Embora andar também me causasse desconforto, não passava disso quando em comparação com ela que não conseguia dar um passo direito. Rapida e facilmente atravessei-me no seu caminho, colocando-me à sua frente - Não o faço por peso de consciência - Ela talvez não acreditasse nisto. Não tinha razões para o fazer. A verdade? Fazia-o porque me importava com ela, porque me importava com a sua sobrevivência, porque gostava dela... para pior dos meus males. Nunca momento em que ela se desequilibrou mais, amparei-a com o meu braço, dando-lhe um apoio para que se aguentasse em pé. - Eu posso ficar fora do apartamento durante umas horas. Ficas com o espaço só para ti - Sugeri tentando com isto conseguir dar-lhe algo que ela ansiasse. - E amanhã levo-te para outro sítio.

Ele acabou por se meter a minha frente, impedindo-me de poder andar. - O problema não é tu estares lá, porque lá dentro é impossivel fugir a tua presença. Tu estás em todo o lado - as minhas pernas começaram a falhar e ele acabou por me apanhar, antes que eu caisse no chao. Ele não entendia que o pior nao eram as dores fisicas ou estar fechada naquele apartamento, era a sua constante presença que custava mais depois das verdades todas que eu tinha descoberto. Eu amava-o e isso doia mais do que qualquer coisa que a sua psicotica namorada pudesse fazer - Eu só queria ir a casa buscar as minhas coisas e ir embora. Desaparecer de uma vez por todas

Já percebia que a minha presença a incomodava. Engraçado como há poucos dias o seu rosto se iluminava quando estávamos numa mesma divisão e agora ela mal conseguia olhar para mim. Não leves a peito, pensei. Ela tinha toda a razão para me odiar, para ter nojo de mim. É melhor assim. Só tinha que me habituar e eventualmente, talvez, a sensação de farpas a espetarem-se cessasse. - Eu percebo que o queiras, a sério, mas entendes também que sozinha não o consegues fazer? - Contive um gemido de frustração - Eu não quero estar no teu caminho, mas por agora tenho de esta. Pelo menos até estares segura. Então aí prometo que nunca mais me verás - Aquela era uma promessa que quebrava, mas tinha de ser. 

Por um lado eu não queria que ele desaparecesse para sempre, porque enquanto ele me segurava, eu não podia deixar de me lembrar como era estar nos seus braços e me sentir feliz. - Porque é que te importas tanto que eu fique segura ? - perguntei retoricamente - Podias simplesmente deixar-me aqui ou num sitio qualquer e deixar-me, ir a tua vida mas continuas a insistir que tens de estar no meu caminho - suspirei

Porquê, realmente? Porquê que continuava a dificultar a minha vida quando podia simplesmente desaparecer do radar? - Não vais acreditar em mim - Tudo o que eu dizia era mentira, não era? Então de nada adiantava dizer-lhe que se insistia em protegê-la era porque me preocupava pelo seu bem estar mais do que me importava com o meu. - Esta conversa é um ciclo vicioso. Podes simplesmente aceitar a minha ajuda desta vez? Já te disse que te quero em segurança e que voluntariamente estou ao teu dispor para isso.

Afastei-me dele, suspirando. Provavelmente não ia acreditar nele, isso era verdade porque não acreditava que ele fizesse aquilo voluntariamente sem um motivo superior. Iria ser sempre um ciclo vicioso porque eu não queria a ajuda desta nova pessoa que eu não conhecia. - Tens razão, provavelmente não iria acreditar no que ias dizer porque eu perdi a confiança em ti - percebi que ele não me ia deixar ir a lado nenhum, por isso voltar a caminhar vagarosamente em direção ao seu apartamento

Apesar de não lhe querer dar razão, eu precisava de comer porque eu mal tinha chegado ao fundo da rua sem perder as forças nas pernas. Acabei por fazer uma sandes e comer uma peça de fruta, adormecendo mal cai na cama. Dei por ele voltar a casa mas o meu corpo doia demasiado para me mexer ou sequer dizer-lhe algo mas também não queria falar com ele. Percebi que era tarde, já estava bem escuro e ele tinha respeitado o espaço que eu lhe tinha pedido. Acabei por ficar a dormitar, sentindo-o a mexer-se pelo apartamento ocasionalmente ou a fazer alguma coisa, percebendo que ele não ia dormir. - Devias dormir - disse quando o sol começou a nascer - Eu posso ficar no chão

Olhei para a roupa, a mesma roupa que ele tinha colocado a dois dias para eu vestir e eu tinha recusado - Se vamos embora daqui a uma hora, então é uma hora que tu podes dormir. Eu prometo que não saio do apartamento, se isso te deixa mais descansado. - disse-lhe e cautelosamente sentei-me na cama, pegando em três comprimidos para as dores. - Estás cansado, não achas que isso é perigoso ? Dorme enquanto eu me visto. - peguei nas roupas para reforçar as minhas palavras - Se não dormires, recuso-me a ir

Ela estava a fincar o pé mais uma vez. Eu estava a tentar ir na onda da adrenalina para não me ir abaixo em termos de energia, mas se calhar quinze minutos não magoam...  - Ok, 15 minutos. Come qualquer coisa - Recomendei enquanto me voltava a sentar na cadeira já que ela estava na cama. Inclinei-me sobre a mão, esta por sua vez apoiada no cotovelo em cima da mesa. Estava tao cansado que bastou um psicar de olhos para entrar numa espécie de sono leve.

- Sim, quinze minutos - disse, apesar de não o ir acordar quando os quinze minutos passassem. Ele precisava de dormir se queria conseguir fazer alguma coisa, eu mal me conseguia mexer com as dores no corpo mas também não ia admitir isso, simplesmente ia levar os comprimidos para as dores e toma-los sempre que pudesse. Levantei-me e fui comer uma sandes, fazendo uma a mais para ele quando se levantasse. Vesti as roupas e prendi o cabelo, escondendo-o debaixo do chapeu, quase podia passar por um rapaz adolescente com feiçoes femininas. Já tinha passado uma hora e eu tinha arrumado a casa de banho, apagando todos os traços da minha presença - Julian - chamei para o acordar

Sono leve achei eu, mas o cansaço das últimas horas sobrepôs-se e tão rápido quanto fechei os olhos adormeci profundamente que nem uma pedra. Era raro isto acontecer, ainda por cima quando não era altura para baixar à guarda. Foi por isso que, quando Hope chamou por mim na tentativa de me acordar, conseguiu com que eu o fizesse sobressaltadamente de tal forma que saltei da cadeira. Pus-me em pé num ápice, ainda ligeiramente desorientado – Merda - Murmurei para mim próprio admoestando-me por ter caído adormecido daquela forma. O meu antebraço estava completamente retesado e dormente depois de ter amparado o peso da minha cabeça aquele tempo todo. Finalmente foquei o meu olhar em Hope que apenas há uns segundos era senão uma mancha esborratada. O novo visual dela era diferente o suficiente para que não fosse facilmente identificada.  – Estás pronta? – Questionei. Foi quando olhava para ela que me apercebi do relógio que estava pendurado na parede atrás dela – Porra, Hope, eu disse quinze minutos! – Fui de imediato reunir todos os meus pertences e deitando para o lixo os demais. Fiz tudo muito rápido. Estava chateado com ela por nos ter feito ganhar um novo atraso. Ou melhor, estava chateado comigo próprio por me ter deixado dormir e confiado nela para me acordar. Não devia ter feito nenhuma dessas coisas.

Dei dois passos para trás quando ele se levantou repentinamente, deixando a cadeira tombar. Aparentemente podia te-lo deixado dormir mais um pouco porque o seu sono era mais profundo do que eu pensava - Sim, já estou pronta. - Puxei o chapeu ainda mais para baixo e estiquei-lhe a sandes que tinha feito - E eu decidi que quinze minutos não eram suficientes para descansares, podes ficar chateado. É-me indiferente - respondi-lhe - Agora come porque não vamos sair daqui enquanto estiveres nesse estado desorientado, não sao mais dois minutos que vão fazer a diferença - encolhi os ombros

O meu foco era tirar-nos dali e dali não era aquele apartamento decrépito, nem Londres somente, mas sim do país por completo. Queria fazê-lo o mais depressa possível, mas estávamos limitados por uma série de fatores, a começar pela debilidade física de Hope e a minha também. – Quinze minutos já era tempo que não devíamos ter perdido, quanto mais uma hora – Agora também já não valia a pena entramos nesta discussão. Coloquei a mochila às costas e a minha arma no cós das calças de jeans pretas. Aceitei a sua sandes com um agradecimento de cabeça. Era um pouco rude, mas comecei a comer a sandes intercaladamente a ditar-lhe o que se ia seguir. – Tenho uma mota numa garagem a um quarteirão daqui. Quando eu sair conta exatamente quatro minutos e depois desce.  Tranca a porta. Seguimos diretos para a estação de St.Pancras. Mantém sempre a cabeça para baixo e mantém-te sempre perto de mim. Compramos os bilhetes e seguimos discretamente para o comboio – Pelas minhas contas haveria um a partir dentro de uma hora. – Isto se ninguém estiver ao nosso encalço – O que eu desejava fortemente que fosse o caso, mas sabia realisticamente que provavelmente não seria. – Percebeste?

Levantei a cadeira que ele tinha deixado cair, sentando-me na mesma a espera que ele me contasse o master plan que tinha feito enquanto eu dormia. Entao ele esperava que eu andasse um quarteirao a um passo normal quando mal tinha conseguido chegar a esquina da sua rua sem desmaiar? Claro, era um plano fazivel quando ambos estavamos de perfeita saude, agora parecia impossivel - Percebi, posso estar loira mas não sou burra. Quatro minutos. Trancar porta. Mota a um quarteirão. Estação de St.Pancras. Ficar perto de ti enquanto tento passar despercebida com a cabeça para baixo. Comprar bilhetes e apanhar o comboio - acho que de nós os dois ele dava mais nas vistas que eu, provavelmente eu conseguiria comprar os bilhetes sozinha e ninguém daria conta agora um homem como ele mas nem iria sugerir isso porque só geraria outra discussão e não tinha cabeça para isso. Tomei dois comprimidos para as dores a seco e olhei para a embalagem, a partir de agora teria de os racionar mas se iriamos andar eu tinha de estar preparada

- Quatro minutos é o que me leva a apanhar a mota e guiar até aqui. Apanho-te à porta do prédio. Se ninguém nos estiver a perseguir chegamos à estação em trinta minutos– Talvez menos se eu pressionasse ainda mais no acelerador.  – Pronta? – Mas não esperei pela resposta. Apontei para o relógio antes de sair. Fui discretamente até à garagem que tinha alugada a um quarteirão dali. Só rezava para que durante os quatro minutos que tinha programado estar fora não acontecesse nada a Hope. Era um risco. Tentei ser o mais rápido possível. Peguei na BMW que ali tenho guardada depois de lhe pôr algum gasóleo. Fez um barulhão ao pegar mas sem stresses. Fui dentro do tempo de regresso ao prédio. Era bom que Hope já estivesse à minha espera.

Assenti apesar dele ja ter virado costas, ainda bem que ele ia sozinho buscar a mota, não sabia se aguentava o caminho até la. Tinham apenas passado dois minutos quando ele saira, quando comecei a descer, eu sabia que ia ser dificil chegar la abaixo e teria de recuperar o folego no fundo das escadas para quando ele chegasse, desse a aparencia que tudo estava normal. Respirei vagarosamente e acabei por me sentar no chao, agarrada as minhas costelas. Iria esperar quinze minutos por ele. Não queria pensar que algo lhe podia acontecer mas havia essa possibilidade, tal como eu era um alvo facil de abater sentada ali no chao, a vista de todos, ele sozinho sabe-se la onde tambem era facil de identificar

Ele chegou dentro do tempo que dissera. Olhei para o relógio para confirmar e apesar de tentar disfarçar a dor ao máximo possível, conseguia vê-lo a olhar para mim; à espera que eu vacilasse mas eu não o ia fazer. - Obrigada - peguei no capacete e subi para a mota. O capacete ficava bastante largo mas a sua intenção era boa, pus os braços à sua volta o mais solto possivel e fechei os olhos - É melhor irmos andando, não nos podemos atrasar

Ela não precisava de me recordar que o tempo urgia. Contive-me ao máximo para não revirar os olhos para não a irritar. Arranquei a todo o gás daquele bairro decrépito. Estava concentrado no caminho mais rápido para chegar à estação mas ainda assim havia um canto longínquo na minha mente que se regozijava na proximidade que tínhamos naqueles instantes, naquele abraço forçado que ela quase me estava a dar. Perdeste o privilégio te te regozijar nisto, mesmo que mal alguma coisa seja,  relembrei-me enquanto me tentava focar no trânsito em nossa volta. Segundo sim segundo não espreitava  pelo espelho se estávamos a ser seguidos. Sabia que as nossas costas tinham como que um gigante sinal vermelho, éramos um alvo em movimento para o meu agora-ex-empregador.  - Agarra-te bem - Avisei quando voltei a pregar pedal a fundo para nos escapar a uns quantos semáforos vermelhos. 

Fechei os olhos e tentei não pensar no trajeto que iamos fazer. Se caissemos na mota, ai é que eu não me ia conseguir voltar a levantar. Sentia o vento contra o meu corpo a tentar atirar-me para trás, forçando-me a agarrar um pouco mais a ele - Não tão rápido - pedi baixinho quando ele voltou a acelerar. Ele já ia tão rápido, era quase impossivel a velocidade a que iamos para não falar que se a polícia nos encontrasse, eramos presos. Chegámos à estação dentro do tempo que ele tinha estipulado e, tal como todas as outras vezes que tinha andado de mota com ele, sentia as minhas pernas trémulas mas não podia apoiar-me mais nele. Afastei as maos do seu tronco e endireitei-me, tentando acalmar a minha respiraçao, respirar demasiado rápido só causava mais dores. Agora era só comprar os bilhetes e embarcar.

A parte complicada começava agora. Entre o nosso tempo de chegada à estação e a hora de partida do Eurorail para Paris tínhamos exatamente 23 minutos, contei. - Mantém a cabeça baixa - Indiquei discretamente. Não podíamos atrair as vistas para nós. - São aproximadamente cem metros até à bilheteira - Estimei. Uma distância que não era nada mas que, acreditava, seria bastante para ela hoje. - Dali seguimos para a pista de embarque - Expliquei para a manter a par do plano. Era isto e tinhamos tempo mais do que suficiente caso não houvesse percalços - Achas que consegues? 

Assenti, voltando a por o meu chapéu o mais para baixo possível para disfarçar a minha cara. Olhei para a bilheteira e respirei fundo - Claro que consigo, eu estou aqui até ao fim e se eu não tiver dentro do comboio, segues sem mim. Mas sou eu que compro o meu bilhete ou vais tu comprar pelos dois ? - perguntei, mantendo a cara séria, escondendo o meu desconforto o máximo possivel