Queen Charlotte's Hospital

Abanei a cabeça, lutando contra todos os meus instintos - Por favor, cuidem bem dela - beijei a sua cabecinha uma última vez e fechei os olhos. Eu não conseguia ver quando a levassem, já me tinham arrancado o coração. Não conseguia aguentar vê-los a levarem-no. Esperei que Mason ma tirasse enquanto chorava silenciosamente

As minhas mãos tremiam um pouco. Não queria fazer aquilo, não sabia se conseguia fazer-lhe aquilo. Mas tinha que ser forte por ela, decidi em último caso. - Lamento, Mer - murmurei enquanto recebia com cuidado a sua bebé nos meus braços. Era uma sensação avassaladora. Nem podia imaginar o que ela estaria a sentir. Levei-a até à enfermeira-chefe que por sua vez levou a bebé consigo.

Deixei de sentir o peso nos meus braços e não consegui aguentar, deixando sair um gemido. Não imaginava que algo pior do que isto pudesse acontecer. Tapei a cara com as minhas mãos, gritando contra as mesmas enquanto chorava. Porque é que eu tinha de continuar a sofrer ? Eu tinha abdicado de Heath porque é que também tinha de abdicar da nossa filha ?

Deixaram-nos sozinhos no quarto. Quase tinha receio de me chegar a ela, ela parecia tão frágil que parecia que se poderia partir. Nunca a vira desta maneira, aos meus olhos Mer sempre tinha sido a mulher mais forte que conhecia. - Oh Mer - Envolvi-a nos meus braços, querendo fazê-la sentir-se menos sozinha. Não fazia a menor ideia do que podia fazer.

Senti os braços de Mason à minha volta e a única coisa que consegui fazer foi enterrar a cara no seu peito, agarrando-me à sua camisola. Nunca me tinha sentido assim, era como se me tivessem arrancado o coração, doia tanto que estava mal disposta. Chorei agarrada a ele durante horas até que acabei por adormecer de exaustão.

Todas aquelas horas foram terríveis. Mesmo em silêncio, quando por fim ela adormeceu cedendo à exaustão física e emocional, o ambiente era triste de mais para conseguir respirar. Observei-a sentado a partir do sofá no canto do quarto. De longe, às vezes, podiam ouvir-se choros vindos de outros quartos. Não era justo que uns pudessem ser felizes e Mer tivesse perdido a sua bebé. Caraças, a Mer é mãe. Também eu me estava a ajustar à realidade. Aproveitei a ocasião para sair do quarto um bocado e ir beber um café. Tinha feito um turno longo e depois tudo isto. Estava acordado há mais de 24h. Quando saí do quarto deparei-me com toda a equipa de enfermagem. Muitos vinham com flores. Toda a gente adorava America, e isso via-se. Fiquei com os seus recados. Seria demasiado avassalador visitarem-na neste momento. A dada altura uma delas passou-me os papéis que Mer teria de preencher sobre Haven. Percebi que alguns me julgavam o pai da bebé, recebi até condolências. Por alguma razão não os corrigi. Regressei ao quarto, mais propriamente ao sofá, depois de dispor as flores na cómoda.

Deixara-me dormitar mas fora um sono leve e interrompido com os seus gemidos de dor. Levantei-me e aproximei-me da cama, pousando a minha mão delicamente nas suas costas - Talvez seja boa ideia darmos-te algo para as dores? - Sugeri, pronto para o fazer. Não era só emocionalmente que ela estava quebrada, o seu corpo passara por um enorme trauma também.

- Não - aclarei a voz, fechando os olhos. Eu só queria ir para casa e fechar-me no quarto até que esquecesse o meu próprio nome - Eu preciso de usar a bomba, o meu peito está cheio... - expliquei-lhe. Nem queria saber do corte que tinha na testa. A dor que sentia no peito era mais forte que outra dor

Tecnicamente, eu sabia todos os procedimentos para mulheres a passar pelo que ela estava a passar mas tinha alguma dificuldade em pensar nela como se de uma paciente tratasse por isso nem sequer tinha pensado na questão do leite materno. Sabia que tinhamos uma em cada quarto da ala de maternidade e fui precisamente buscá-la. - Devo chamar a enfermeira-chefe Jones? - Era comum haver um enfermeiro nestas ocasiões. Para o efeito, nem eu nem Mer poderíamos ser considerados. A obstetra também a deveria examinar em breve para o pós-parto. - Nem sequer um ibuprofeno, Mer? Vai ajudar para o corpo dorido - não queria que ela estivesse em mais sofrimento do que já estava.

Encolhi os ombros. Não queria saber se me ajudavam, não queria saber de protocolos, não queria saber de nada nem ninguém. - Não me vai tirar as dores que interessam - por baixo do vestido hospitalar coloquei a bomba e comecei a usa-la - Eu só quero ir para casa e estar sozinha - o quarto estava cheio de flores e peluches de várias pessoas que tinham passado no quarto para deixar os seus sentimentos mas o que faria eu com os peluches ? Não havia bebé para brincar com eles. Havia também uns papéis a espera de serem preenchidos para saber o destino de Haven - Esses papeis... - como é que podiam pedir que eu escolhesse o que fazer com a minha filha. Como poderia eu olhar para um caixão pouco maior que o meu braço e po-lo debaixo da terra. Não, não conseguia pensar nisso agora - Sabes se trouxeram a fotografia ? ou a mão e o pé ?

O olhar dela estava completamente dominado pela dor e isso assustava-me, que ela estivesse absolutamente dominada pela dor e daquele burcao negro não saísse. - Não vai tirar, não. Nada o fará, mas o teu corpo não deve sofrer mais, nem adiar a recuperação - tentei convencê-la. Ia perguntar-lhe se queria privacidade mas ela avançou com a bomba e nada disse por isso não ia ser eu a fazê-lo - Ainda não trouxeram nada, mas devem estar quase a fazê-lo. Quanto aos papéis ainda tens algum tempo... ou se quiseres eu posso tratar deles, basta assinares - ofereci, tentando ajudar, embora não fizesse ideia de quais eram os seus desejos.

- Ajudas-me a tratar disso ? - perguntei, suspirando. Eu não conseguia sequer olhar para os papeis - Eu não consigo, eu nao.. não quero escolher essas coisas - passei a mao pela cara - Como é que eu posso preencher esses papeis ? Porque é que tenho de continuar a prolongar o sofrimento ? Ninguém nos prepara para isto nas aulas, muito menos quando é para experiencia pessoal - senti uma lagrima a cair e outra - Eu só quero a minha filha

Partia-me mesmo o coração vê-la daquela maneira. - Ajudo. Darei o meu melhor, mas preciso de saber se há linhas vermelhas e se... hum, se preencho o nome como Haven Singer apenas - Incomodava-me ter de lhe perguntar aquilo mas não podia tomar aquela decisão por si - Tens razão, não nos preparam. Sabemos que estas coisas acontecem, vê-mo-las a acontecer, mas desejamos que nunca se passem com os nossos - Era injusto para dizer o minimo - Mas tu és forte, America. Vais honrar a tua filha. 

Qual era o nome dela ? Seria injusto eu usar apenas o meu nome ou deveria também usar o dele, afinal ela era filha de Heath também. Heath que nunca saberia que tinhamos tido uma filha, que não sabia que a nossa filha tinha nascido mas que não tinha vivido tempo o suficiente para o conhecer - Devo ser justa ou egoista ? - perguntei - Ela é filha dele apesar dele não saber. Ela será Haven Singer Prescott e teria tido o melhor padrinho do mundo - disse, olhando para ele. Eu não tinha contado a ninguém da gravidez e uma vez que a minha barriga era pequena, tinha conseguido disfarçar mas eu queria que ele fosse o padrinho, independentemente do que acontecera

Não que eu não o adivinhasse, mas ter a confirmação do que a bebé era filha do Prescott deixava-me zangado de qualquer das formas. Não insisti no assunto, mas não entendia porque não sabia ele do assunto. Ele era a causa de todos os males de Mer. - Haven Singer Prescott - Engoli a seco quando ela disse que seria o seu padrinho - É uma honra, Mer. - dosse genuinamente. Sabia que pouca gente me dava crédito, pouca gente me levava a sério, mas tivesse aquele dia seguido outro rumo, tivesse  a bebé sobrevivido, eu teria-lhe dado o meu amor, uma parcela daquilo que sentia pela mãe. 

Acabei por tirar a bomba e olhei para o leite - Eu não sei se é bom mas se calhar alguém pode dar o leite aos bebés que não tem ninguém - desviei o olhar - Podemos ir para casa ? - pedi enquanto me sentava, preparando-me para sair da cama e me vestir

- Tenho a certeza que deve ser aproveitável - estendi a mão para a garrafa, disposto a ir averiguar o assunto. Mesmo enrolada na sua dor, o espirito caridoso de Mer não desaparecia. - Mer, precisas de alta médica, sabes muito bem - e como que por sorte a Dr. DeLuca apareceu.

- Eu não consigo estar aqui, não no quarto onde.. - abanei a cabeça, limpando a lágrima que caiu. a Dra. DeLuca entrou e, apesar de saber qual era o protocolo e que ela estava apenas a tentar ajudar, eu entendia porque e que os pais se passavam. Eu só queria ser deixada em paz. Queria ir para casa e esquecer que o mundo existe. Apesar de tudo, tive alta. O parto tinha corrido bem, eu não tinha sequelas o que era bom sinal e significava outras coisas que eu não conseguia pensar agora - Eu preciso da fotografia, do pé, da mão.. da minha roupa, onde está ? - perguntei, pondo um pé no chão  - ou uma farda, o que preferirem mas eu quero ir para casa

Não fiquei para a examinação. Enquanto isso tinha resolvido a questão do leite materno e tratado dos papéis e obtido um certificado de nascença e de óbito para Haven. Tinham-me, também, entregado a caixa com as coisas da bebé: as pulseiras hospitalres, algumas fotografias polaroid, as impressões das mãos e dos papés, e o cobertor no qual a bebé tinha estado enrolada após o parto. Coloquei também os certificados. - Aqui está - Disse pois entrara no quarto pela altura da sua pergunta - Fica quieta. Vou buscar as tuas coisas ao cacifo - informei e saí novamente do quarto. Pelo caminho fui pensando no que ia fazer. Não havia hipótese de a deixar sozinha. Até porque no dia seguinte haveria a cerimónia fúnebre. Ainda tinha que lhe dizer isso.

Sentia que ia explodir a qualquer momento, onde quer que olhasse era como se revivesse a noite passada. O esforço, a ansiedade em salvar a bebé, as vozes dos médicos e tudo em vão. Com as mãos trémulas abri a caixa, pegando numa fotografia. Como é que eu podia ir para casa sem ela, olhar para o seu quarto onde era o escritório onde eu tinha pintado entre turnos, comprado roupas e acessórios. Quando Mason chegou, pedi aos médicos para sairem e ficámos só nós dois - Obrigada por teres tratado dos papeis - agradeci, olhando para a roupa. - Eu não tenho força - murmurei, sentindo-me derrotada enquanto começava a chorar novamente

Começava a atingir níveis de cansaço vísiveis, mas mantive-me seguro, como se tivesse ideia do que estava a fazer, porque era a única forma que sabia poder apoiá-la neste momento. - Fico contente por poder ajudar. Estou aqui para ti - recordei. Queria que ela soubesse que não ia a lado nenhum. Sentei-me ao seu lado na cama. Rodeei os seus ombros com o meu braço - Um dia de cada vez, America, um dia de cada vez - Lamentava não ter sábias palavras de conselhos - Sei que nenhum de nós é particularmente religioso mas, na fé hindu, acreditamos no samsara, o ciclo de nascimento e morte, o ciclo da vida. Acreditamos que a Haven renascerá e se voltarão a cruzar numa outra vida - Dificilmente eram palavras reconfortantes mas era o que tinha.

Sabia que as suas palavras serviam para me reconfortar mas nada aliviava a dor que eu sentia. Nós até nos podiamos cruzar noutra vida mas nesta ela era minha filha e não viria para casa comigo. - Ficas comigo ? - pedi-lhe - Em casa ? Só os dois às escuras até eu esquecer este pesado ? - lentamente por causa das dores de corpo comecei a tirar o vestido do hospital para poder vestir a minha roupa. suspirei - eu vou com isto para casa - disse, desistindo de mudar de roupa

Passei-lhe o meu casaco que entretanto tinha recuperado do meu cacifo. Não tivera tempo de mudar a minha própria roupa, ou melhor os scrubs ensanguentadas que tinha do meu turno. Mas tinha comigo o saco de roupa liimpa que guardava no meu cacifo - Claro que fico contigo. Não vou a lado nenhum - Já tinha também tratado da papelada para a licença de maternidade que ela tinha direito na mesma. - Vamos apanhar um táxi. Já chamei e deve estar na entrada - Informei. Nenhum de nós estava em condições para conduzir. Ofereci-lhe o meu braço para a apoiar a andar. Deduzia que tivesse algumas dores, ainda não fizera nem 24h desde que dera à luz.

Vesti o seu casaco, sendo praticamente engolida pela diferença de tamanhos. Apertei-o para poder esconder o rosto e ninguém conseguir ver a minha barriga. Apoiei-me nele, agradecida por te-lo comigo, se tivesse sozinha nem sabia como iria chegar ate casa. Entrámos no táxi e ele deu a morada do meu apartamento - obrigada Mace - agradeci, encostando-me ao seu ombro enquanto olhava para as ruas de Londres a passar. Aparentemente tudo o que fazia em táxis agora era chorar, nos estados unidos ou em londres - desculpa se nao te contei, não estava preparada. As únicas pessoas que sabiam eram os nossos superiores e as minhas médicas - murmurei, limpando as lágrimas