Quarto de Hope

- Tendo em conta a poça de sangue que estavas a criar, não sei se tu aguentarias se eu não tivesse cuidado de ti - respondi-lhe e quando o seu olhar se cruzou com o meu e me pediu desculpa, larguei o seu pulso, quase como se tivesse recebido um choque - Talvez devesses poupar para que dê para os dois porque se o meu pode infetar, o teu também pode - fechei os olhos - Eu sei que vai doer mas não deve doer mais do que quando as fizeram - inclinei-me para trás e deixei que ele desinfetasse as feridas

- Obrigado - Foi tudo o que voltei a dizer porque não queria entrar por aquela conversa. Esperava que ela se contentasse com esse feito, mas sabendo que ela me achava uma espécie de captor, não tinha tantas certezas de que houvesse essa possibilidade. - Eu aguento-me, já disse. Não é a primeira vez - Acabei por revelar. Tratei dela com o maior cuidado, a maior atenção, a maior reverência. Não fui distraído pelo seu corpo nu até porque me custava olhar - estas eram as marcas da minha incompetência, do facto de não a ter conseguido ajudar quando precisava, do facto de não ter conseguido evitar nada daquilo. - Esperemos que não infete -  No fim sobrava apenas um bocadinho de álcool etílico. 

- Eu não te ia deixar morrer, por muito que penses que possa fazer isso. - disse-lhe, continuando com os olhos fechados. Falar ajudava-me a distrair da dor e da tensão dos meus músculos - Acho que se isso tivesse acontecido, eu teria quebrado por completo porque independentemente de tudo o que aconteceu entre nós ter sido à base de mentiras, eu ainda penso no meu Kenneth quando preciso de força e foi por isso que salvei o Julian - ele acabou por se afastar e eu levei isso como um sinal que estava tudo desinfetado - Obrigada - agradeci e vesti a camisola, esticando a mao para ele me passar o alcool - Ainda da para desinfetar a tua, certo ?

- Eu não penso isso - Corrigi de imediato. Era isso que ela pensava? Eu só não achava que ela fosse activamente prevenir essa situação. Ouvi a sua explicação e uma parte de mim achava que fazia sentido, a outra achava só que isto era tudo completamente lixado. Queria dizer-lhe que não fora tudo mentiras, mas será que não? Eu gostava dela, mas no fundo era uma mentira desde o inicio porque não era suposto alguma vez nos termos conhecido. - Não sou o Kenneth. Menti-te, é certo. Mas nem tudo foi... - Nem sabia o que dizer por isso nada disse. Observei o frasco de álcool. Daria para pouco e já não tínhamos compressas o que me obrigou a rasgar um pouco de uma camisola velha. - Sim, acho que ainda dá - Estava preparado para o fazer. Não sabia se ela queria ajudar, tampouco a obrigaria a isso.

- Eu sei que não és o Kenneth, dai eu vos diferenciar. O meu Kenneth - levei a mão ao coração - o Julian - apontei para ele - Não te preocupes. O que passou, passou - Ele podia ficar descansado porque não iria haver confusões sentimentais com ele. Eu sabia que devia ser estranho eu saber a verdade e ter de estar aqui fechado comigo, por isso ia tratá-lo com imparcialidade. Só tinha de encarar a realidade, o Kenneth desaparecera por completo e eu tinha de viver com isso. - Então se ainda dá, tira a camisola - disse, continuando de mão esticada a espera que ele passasse o alcool. Já que ele me podia chatear para desinfetar as feridas, eu podia fazer o mesmo.

Se ela queria fazer aquela distinção, que a fizesse. Houvera tantas vezes em que desejara que ela dissesse, que gemesse, o meu nome verdadeira ao invés do nome impostor. Irónico que quando ela finalmente o fazia era com a pior conotação. Sorri amargamente para mim próprio ao pensar nisto. "O que passou, passou", excepto que não é assim tão simples, pois não?  De todo. Raios para isto tudo. - Sei que isto é tudo lixado. Não queria brincar com os teus sentimentos assim. Era suposto achares que viajara para o outro lado do mundo sem plano de regresso - E obviamente que ela nunca viesse a descobrir que Kenneth era uma invenção, uma farsa orquestrada por quem lhe queria mal. Excepto que eu nunca lhe quisera mal.- Não tens que o fazer - Mas como estava cansado e ela oferecia a sua mão de qualquer forma, passei-lhe o pedaço de algodão da camisola já embebido em álcool. Porque a ferida ficava lateral ao torso, deitei-me parcialmente na cama achando que seria mais fácil para ela manobrá-la assim.

Deixei que ele se deitasse na cama e peguei no pedaço de tecido, tendo cuidado com as minhas próprias maos. Se queria que as minhas unhas voltassem a crescer, tinha de ter cuidado com o que lhes tocava - Pois, mas não foi o que aconteceu. Tu desapareceste mas não foi para o outro lado do mundo - suspirei e comecei a tratar a sua ferida cuidadosamente - Já viste que nunca é vossa intenção magoar ninguém mas continuam a fazê-lo ? Porque não fingires que eras apenas meu amigo em vez de teres de orquestrar aquilo tudo ? - perguntei retoricamente - Esquece, nada do que respondas vai fechar este tipo de ferida - continuei a desinfetar a sua ferida em silêncio, acabando por mudar a ligadura para ficar limpa - Já está. Podes ficar deitado, devias. Também devias descansar - sentei-me no chão virada para a porta e de costas para ele

Tocava-me de uma forma profunda que ela, mesmo em pior estado do que eu, sobretudo nas mãos que tinham sido alvo do sadismo de Jennifer,  quisesse cuidar do meu ferimento e o fizesse delicadamente. Também tinha uma dívida de agradecimento para com Hope. - Hope... Eu regressei a tua casa. Ainda me ia despedir. Depois vi tudo revirado e a Jennifer e... Que porra para isto tudo - Não que isso fizesse a diferença ela perceber que eu não antecipara nada daquilo, sobretudo não o seu sofrimento. - Eu dei para trás, não dei? No inicio nem era propriamente simpático contigo, não queria criar laços desnecessários mas as coisas foram evoluindo.  - Claro que a podia ter parado, que podia verdadeiramente ter parado os meus avanços quando percebera que ela estava emocionalmente investida na relação que tínhamos. Pior ainda quando fizéramos amo... sexo, quando fizéramos sexo. Sabia que esse tinha sido um ponto sem retorno, a única vez que quebrara essa linha em toda  a minha carreira. - Sei que não serve de nada, Hope, mas lamento-o profundamente. Quem me dera que as circunstâncias tivessem sido outras quando te conheci. Ou que nunca nos tivéssemos conhecido - Se assim fosse talvez ela nunca tivesse de estar a passar por isto. Ou, se calhar, teria sido bem pior... De nada valia indagar agora. Ainda assim não conseguia arrepender-me de a ter conhecida e era um canalha egoísta por isso. Ela não o merecia. - Obrigado -  Finalmente deixei de ficar tenso pela dor induzida pelo álcool e observei como ela se fechava em copas para mim. - Cabemos os dois, não? Eu fico mesmo à beirinha. Nem nos tocaremos. Deves descansar deitada, os teus pontos são frágeis - Não a gostava de ver no chão.

Fiz tudo o que pude e não pude para conter as lágrimas enquanto ele se explicava ou tentava explicar melhor. Era verdade, ele tinha dado para trás, ele tinha "tentado" ser amigo ao inicio mas não tinha sido uma tentativa muito forte. Eu podia ter forçado mas ele também não me tinha parado, muito menos quando começáramos a fazer sexo. Ele tivera muitas oportunidades para parar, muitas oportunidades para me dar para trás mas ele continuou com a fachada durante meses, incluindo quando Christian.. - Eu já tive o meu lugar na cama, agora é a tua vez. Também negaste a minha oferta quando te ofereci lugar ao meu lado - levantei-me e fui até à casa de banho, fechando-me. Tapei a boca com a mão para evitar que os meus soluços fossem ouvidos, deslizando pela porta até ficar sentada no chão a tentar conter tudo o que sentia.

Touché, pensei quando ela recusou a minha oferta. Era verdade que recusara mas fora só porque achava que ela precisava de estar o mais à vontade possível. Vi-a seguir rapidamente para a casa de banho e questionei o que poderia estar ela a fazer. Não se ouvia um único barulho: ou estava simplesmente farta de estar na mesma divisão do que eu, ou estava a chorar. Sabia-o de experiência. Suspirei fundo irritado com a minha impotência, com a minha culpa. Queria partir a cara de alguém só para descomprimir... Ao invés, como não o podia fazer, fechei os olhos ao de leve.

Sentia que não conseguia parar de chorar e as suas palavras não paravam de ecoar na minha cabeça Ou que nunca nos tivéssemos conhecido. Talvez tivesse sido melhor se nunca nos tivéssemos conhecido, agora não estava completamente quebrada, sem ponto de retorno. Eu só queria sair daqui, deste espaço fechado onde era impossível respirar, queria acabar com aquela situação de uma vez por todas. Se a dor parasse, seria tudo mais fácil e eu deixava de sofrer, já ninguém me poderia usar como moeda de troca. Queria gritar, pela dor que ele me tinha causado no coração, pelas dores físicas que Jennifer me tinha feito, queria gritar e desintegrar-me naquele chão mas nem isso podia ou ele ia acordar. Tive ali durante horas até que já não tinha nada para chorar, ou pelo menos lágrimas já não corriam.

Acabei por adormecer, embora fosse um sono leve. Não sabia bem quanto tempo passara mas Hope ainda não estava à vista. Sobressaltei-me por um segundo: será que ela se tinha ido embora? Eu teria ouvido, certo? Saltei da cama num ápice, praguejando quando isso causou uma dor lancinante no abdómen. Experimentei a maçaneta da porta que, felizmente, não estava trancada mas percebi que um corpo a bloqueava de qualquer das maneiras - Hope? Estás bem? A cama está livre... - Não sabia o que lhe dizer. Era das poucas vezes que isto acontecera. 

- Sim, está. - respondi-lhe e continuei na mesma posição, tentando apagar da minha cabeça todos os nossos momentos. Se calhar se eu tentasse com muita força, eu podia simplesmente apagar o seu rosto. Apagar a sua existência como ele tanto queria, infelizmente teria que ficar com ele até sairmos do país mas quando tivéssemos fora de Inglaterra, ou simplesmente fora de Londres, eu conseguisse fugir dele e desaparecer para algum lado. - Eu estou bem aqui. - menti. Tinha frio, o meu corpo doía de estar sentada no chão e de estar encolhida mas eu não me ia mexer dali até termos de ir embora.

Não consegui acreditar numa única palavra do que ela dissera. - Devias comer qualquer coisa. Há pão. Ovos. Posso fazer algo - Ela gostava do que eu cozinhava, não era? Mas como não estava certo de que isto a fosse convencer a sair da casa de banho, optei por uma meia verdade - Preciso de entrar, estou aflito - Talvez não fosse assim tão urgente mas não deixava de ser verdade. 

Suspirei e a custo levantei-me. De estar na mesma posição a tanto tempo, as minhas pernas estavam ambas dormentes e não conseguia bem sentir os meus passos. - Eu não tenho fome - abri a porta e sai para ele poder ir a casa de banho como tanto precisava - Eu se tiver fome, vou fazer alguma coisa. - respondi-lhe e fiquei a espera que ele entrasse, vendo-o parado a olhar para mim - Não estavas aflito ? - perguntei, reparando que ele não se mexia. Provavelmente outra mentira para eu sair da casa de banho

- É normal que tenhas pouco apetite, mas far-te-ia bem - Não queria estar sempre a pregar-lhe sermões. Ela já mal me olhava na cara. - Estou aflito - repeti embora não fosse verdade. Entrei e fechei a porta, acabando depois por aliviar a pressão sobre a bexiga - eu não mentira inteiramente. Aproveitei que lá estava para tomar um duche rápido, tendo cuidado com os pontos. Quando saí, ainda só de calças vestidas, cozinhei uma omelete. Talvez o cheiro acendesse o seu apetite.

Aproveitei enquanto ele estava na casa de banho para experimentar a porta da rua mas em vão, esta estava trancada. Ainda tentei procurar discretamente a chave mas sabia que os seus duches eram rápidos, provavelmente tinha cinco minutos. Dez no máximo. Acabei por desistir até porque não me conseguia mexer muito rápido e sentei-me à beira da cama, abraçada à almofada, de costas para a casa de banho. Eu sabia o que ele estava a fazer mas desta vez não ia resultar, ele já o tinha feito na altura de Christian mas desta vez não era Kenneth que estava a cozinhar para mim, eu não tinha razão para comer uma refeição feita por ele. Se fosse comer alguma coisa, a partir de agora, seria porque eu o faria.

Acabei sentado a comer uma omelete sozinho quando se tornou óbvio que ela não se ia mover nem que ia ceder ao apetite, se é que o tinha. Deixei na mesma uma segunda omelete caso ela mudasse de ideias. E falando em mudar de ideias - Vais fazê-lo? - Questionei enquanto voltava a segurar a caixa de tinta para o cabelo, que depois voltei a pousar na cama, onde ela a podia ver.

Olhei para a caixa de tinta de cabelo na sua mão quando ele me perguntou se o ia fazer. Eu não o queria fazer, não achava que era algo que me fosse beneficiar mas se ele dizia que era assim tão preciso para não me reconhecerem, ou pelo menos, confundi-los o máximo possivel - Sim - respondi-lhe - Agora ? - perguntei, olhando novamente para a caixa de tinta

Eu apenas perguntara porque não estava certo de que ela aceitasse a ideia, tal como não parecia aceitar muitas das cosias que lhe dissera. Nunca lhe pediria uma coisa destas se não achasse necessária. - Quando quiseres. É melhor ajudar-te com isto - Os movimentos dela estavam demasiado limitados para o conseguir fazer sozinha, pelo menos sem sentir muita dor.

- Não, eu faço - neguei a sua ajuda. O meu corpo ainda doia e provavelmente iria demorar mais tempo mas se tinha de fazer isto, iria fazê-lo sozinha. Levantei-me e peguei na caixa, suspirando. Não iria ser por muito tempo, era só cabelo. No grande esquema das coisas, isto devia ser o que custava menos mas custava à mesma porque podia não parecer mas eu era um bocadinho vaidosa. Fechei-me novamente na casa de banho e comecei a pintar o cabelo, um processo que ao fim de um tempo se tornou doloroso para os meus braços e para as minhas costas mas eu ia fazê-lo

Devia ter assente de uma vez por todas que ela não queria a minha ajuda para nada - nem para pequenas tarefas como esta, nem para a ajudar a sair desta embrulhada toda. Custava-me que ela resistisse tanto. - Enfim - Suspirei quando ela se enfiou novamente na casa de banho e pareceu demorar tantas horas quantas antes lá tinha passado. Se eu a ajudasse seria bem mais rápido. Outra parte de mim estava também ansiosa por saber como ficaria ela com o cabelo bem mais claro graças à tinta. Queria admoestar-me por ter esta curiosidade, mas não conseguia.

Quando acabei, não estava assim tão mal. Só conseguia pensar que me parecia com Africa e só precisava do fake tan e roupa cara para pertencer à sociedade que ela tanto queria e aos anos se debatia comigo. Para ele não dizer que eu não estava dedicada a isto, que eu estava contrariada com esta situação toda e com ele, acabei por cortar o cabelo. Pus o cabelo cortado e as embalagens da tinta dentro do pacote e sai da casa de banho - Onde queres que ponha isto ? - perguntei-lhe, sabendo que talvez fosse melhor num lixo separado para não associarem a ele.

Estava absorto em pensamentos quando ela saiu da casa de banho. Se a tivesse visto na rua inesperadamente não a teria reconhecido de imediato, o que era o efeito pretendido - Wow - Acabei por soltar. Ela estava tão diferente, loira e de cabelo curto. Mas, ao olhar para os seus olhos, via a minha Hope - Hum eu posso tratar disso - Peguei na caixa e atirei-a para o caixote do lixo. Antes de sairmos daquela casa queimaria tudo. - O look não te fica mal. Não te vão reconhecer de relance.

Eu tinha ouvido o seu comentário e era injusto o modo como ele ainda falava, como se nós tivéssemos juntos. Como se eu não soubesse que o que ele sentira, não fora uma mentira - Ainda bem que surtiu o efeito desejado - respondi-lhe, passando a mão no cabelo. Ainda era estranho ter o cabelo curto, não ter aquela proteção visual mas teria de ser. - Quando tivermos de ir embora, eu visto as roupas. Não o faço agora para não as amarrotar - expliquei e desta vez deitei-me na cama, sentindo-me exausta