Quarto de Hope

- Claro, claro - Percebi que isto já era quase um dar o braço a torcer pela sua parte e não ia forçar mais e correr o risco de a voltar a fechar-se totalmente em copas. Abri a pequena janela. Agora já era noite novamente, madrugada aliás. Estávamos ali há mais de vinte e quatro horas. Como seriam as próximas? Tínhamos que sair dali em breve. Voltei a sentar-me na cadeira, dando-lhe espaço se é que isso era possível dentro daquele apartamento sem divisoes.

Fiquei novamente de costas para ele, como das outras vezes. Ele na cadeira e eu na cama. Era incrível como as coisas podiam mudar tanto em 24 horas ou menos, nem sabia o tempo que tinha passado. Ainda ontem passava a noite toda a dormir nos seus braços e agora mal conseguia olhá-lo sem me desmanchar em lágrimas. Acabei por adormecer com o cansaço, na ponta da cama mais afastada dele.

Mais uma noite passada meio em claro. Adormecia por breves períodos de tempo na cadeira, mas eram sempre de um sono leve. A minha consciência não me permitia nenhum alivio. Que se lixe. Não era algo pelo qual nunca tivesse passado.  Ao menos Hope dormia. Já ficava contente que um de nós conseguisse fazê-lo. 

Na manhã seguinte voltei a fazer um pequeno-almoço de ovos, bacon e desta vez panquecas. Já não sabia que mais fazer para a pôr a comer a não ser obrigá-la a engolir alguma coisa. 

Passei a noite a sonhar novamente com o rapto, com Julian e Kenneth, Kenneth e Julian e a tortura. A sua dupla identidade era o maior foco dos meus pesadelos e a sua traição não saia da minha mente por muito que eu tentasse. Por muito que tivesse dormido, o meu corpo parecia que doia cada vez mais. Acordei de madrugada mas deixei-me ficar deitada na mesma posição, ouvindo-o a mexer na cozinha e a fazer o pequeno almoço. Cheirava ao tipico pequeno almoço que ele me costumava fazer em casa, panquecas, bacon, ovos e provavelmente sumo de laranja para acompanhar

Era capaz de dormir em pé se fosse preciso. Estava cansado e em dores, há mais de 48 horas sem um descanso a sério. Mas tinha de me acordar desse por onde desse. Não podia comprometer a nossa segurança com base nisto. Por isso decidi voltar a sair à rua. Já estava equipado com a arma no cós das calças e tudo mais quando ia para sair e percebi que ela afinal estava acordada. Ia isto ser um problema? - Vou buscar café e outros bens essenciais. Medicamentos também. Precisas de alguma coisa?

Preciso de sair daqui, pensei mas apenas lhe respondi que não com a cabeça e continuei deitada na cama. Tinha-o visto por a arma no cós das calças e não podia dizer que estava confortável por descobrir que ele estava armado ali dentro - Não, obrigada pela oferta. - acabei por dizer e virei-lhe as costas, abraçando a almofada. Esperava bem que ir buscar mais bens essenciais não significasse que tivéssemos de ficar aqui por muito mais tempo

- Okay - Não havendo nada mais a dizer, saí tanto de casa como do prédio silenciosamente. Era melhor dar o menos nas vistas possível. Fui diligente na tarefa em mãos, passando primeiro pela farmácia e depois no supermercado. A verdade é que não sabia ainda quanto tempo estaria por ali. Só mesmo aguentar até Hope conseguir recuperar o suficiente, pensei para mim mesmo. Voltei a entrar no T0 e uma espécie de alivio atacou-me por ela ainda ali estar. - Trouxe uns analgésicos e anti-inflamatórios mais fortes. Vão ajudar um bocadinho - Disse ao colocar duas caixas de comprimidos à beira da cama. 

Eu ouvi quando ele saiu e percebi que ele não tinha trancado a porta, não desta vez mas do que é que me valia fugir se eu provavelmente nem conseguiria descer as escadas sem ficar cansada? Sentia-me demasiado fraca e com demasiadas dores. Levantei-me e fui ver o que ele tinha no frigorífico para comer, reparando no pequeno almoço. Tal como eu tinha previsto, era o típico pequeno almoço que Kenneth me costumava fazer mas ele que não pensasse que me podia comprar assim. Acabei por comer um pouco, deixando maior parte da comida para ele - Obrigada - foi a unica coisa que lhe respondi - Que dia é hoje ? - acabei por lhe perguntar

Acabei surpreendido pelo seu agradecimento. Apesar de, para uns, aquilo que eu estava a fazer fosse quase como que um favor a ela, na verdade sentia-me o mais oposto disso. Fora eu quem a deixara acabar nesta embrulhada. Ela nada me tinha a agradecer, eu devia-lhe isto no mínimo. Jamais a poderia compensar. - Quarta, dia 3 - Respondi. Pousei outro saco em cima da bancada da cozinha e sorri ao ver que ela penicara um bocadinho. Ainda bem que ela não podia ver o meu rosto neste momento.

Peguei em dois comprimidos para as dores e tomei-os, voltando-me a deitar. Com a quantidade de coisas que ele trazia nos sacos, queria dizer que ainda iamos ficar ali por uns dias - Quando vamos embora ? Não quero estar mais aqui fechada - disse-lhe. Podia ainda estar exausta e o meu corpo não estar recuperado mas preferia arriscar a sair daqui e morrer, do que ficar eternamente fechada naquelas quatro paredes. Estava pior do que a Rapunzel, nem a rua podia ver.

Se pudéssemos iríamos embora já hoje. Contudo, sabia que se nos apanhassem nenhum estava em condições para andar muito rápido, quanto mais correr. Não que isso fosse acontecer num tempo próximo, mas pelo menos teriamos de recarregar energias. Também me dava tempo para planear o próximo passo - Dentro de alguns dias - Não sabia dizer ao certo, dependia de como ela se sentiria, de como eu me sentiria. - Dois, três dias no máximo - Isto se ninguém viesse à nossa procura. O que me lembrou que devia voltar a sentar-me e a estar atento às camaras de videovigilância que tinha no quarteirão.

- Dizias que não podíamos ficar aqui muito tempo, no entanto ainda não saí daqui. - respondi-lhe. Ele já tinha saído duas vezes para ir buscar comida - O que trouxeste aí nesse saco não são apenas para dois, três dias mas já que tu é que decides tudo - encolhi os ombros e voltei-me a virar de costas, tapando-me. - Ficamos onde quiseres e vamos embora quando quiseres.

- Estamos aqui há menos de quarenta e oito horas - Também não era para tanto mas, apesar de tudo, ela tinha razão. Se pudéssemos, devíamos partir imediatamente. Talvez por cansaço, talvez por irritação e fitei-a e algo brutalmente questionei - Não seja por isso. Opina. Ninguém te proíbe de o fazeres. Ninguém te está aqui a manter presa por capricho - Arrependi-me da forma de como o dissera imediatamente mas nao podia voltar atrás.

Engoli em seco, atirando-lhe com a almofada. Sabia que isso não ia fazer estrago nenhum mas era mais para expandir o que sentia do que propriamente magoá-lo - Ainda és mais estúpido do que eu pensava - disse-lhe, levantando-me. Tentei sair pela porta da frente mas esta estava trancada. Queria sair dali, sentia-me sufocada, estava livre de andar pelo apartamento mas ao mesmo tempo continuava uma prisioneira - Ah é verdade, acabaste de admitir que eu estava aqui presa. Ao menos com os outros explicitaram-me que eu estava raptada e presa, enquanto tu aqui disseste que eu estava era segura - virei-me e fechei-me na casa de banho. Precisava de sair dali, nem que fosse pela janela.

Podia ter-me desviado do embate mas não o fiz. Mesmo que fosse um almofada, merecia qualquer impacto que ela me quisesse provocar.  A sério que ela ia puxar pela semântica? A sério?  Cobri a distância dali até à porta onde ela estivera há segundos e destranquei-a da parte de dentro - Satisfeita? Há pouco saí e a porta esteve destrancada. - Podia ser o mau da fita em muitas coisas mas não em querer mantê-la viva agora. - Achas que me estou a divertir, Hope? Hein?  - O idiota era estar a falar para uma porta fechada. 

Encolhi-me num canto da casa de banho e tapei a cabeça, fechando os olhos - Desaparece. - gritei - Vai-te embora e deixa-me em paz de uma vez por todas. Já não arruinaste a minha vida o suficiente ? Chega! Chega!! Eu não aguento! - continuei a gritar. já não aguentava nada daquela situação. já não aguentava mais um segundo, era demais. tinha começado a ficar tudo arruinado desde que Christian tinha violado e depois ele tinha-me ajudado mas tinha sido tudo falso, o acidente dele, agora o rapto e tudo o que aconteceu.

Naquele momento o apartamento pareceu ainda mais pequeno do que já era. Era como se de uma gaiola se tratasse, realmente. Entendia o seu lado, mas caramba, não era como se eu me estivesse a divertir à grande à pala daquilo tudo. - Mas aguentas - Gritei em resposta. Assim tinha que ser, assim tinha ela que o fazer. Já eu tinha de perceber o que fazer também. Se continuássemos assim íamos ambos dar em loucos e acabar a matar-nos um ao outro. 

Não queria ouvir mais nada do que ele tinha a dizer. Não queria vê-lo mais, não queria mais estar ali. Só conseguia pensar em todos os momentos que tínhamos tido os dois e questionava-me o que tinha sido verdadeiro e o que tinha sido falso porque não podia ter sido tudo falso. Seria ele assim tão bom ator ? Teria sido assim tão burra ao ponto de não perceber que estava a ser enganada ? Eu não conseguia aguentar, ele dizia que sim mas quem é que eu queria enganar, eu estava a entrar num buraco negro onde nunca mais ia sair

Ela não saía dali de dentro da casa de banho e eu também não estava para ficar em pé do outro lado da porta à espera que ela o fizesse. Precisava de cinco minutos. Saí porta fora e fui até à entrada do prédio, ficando meio escondido atrás de uma árvore. Quem me dera ter um cigarro agora.

Iria dar em maluca se ficasse ali mais uns dias como ele queria. Aliás, eu iria dar em maluca se ficasse com ele, sempre que olhava para ele só conseguia pensar nas mentiras que ele tinha contado. O apartamento estava silencioso, muito silencioso. Limpei as lágrimas e levantei-me, vendo que estava sozinha e decidi que ia sair dali. Não queria saber sequer de como estava ou não vestida ou descalça. Comecei a descer as escadas, ficando exausta antes sequer de chegar à rua mas só de saber que estava quase livre não queria saber do cansaço.

O meu olhar fixou-se imediatamente na porta do prédio quando ouvi o clique. Não sabia se haveria de me sentir insultado por ver Hope, ou se simplesmente resignado. Surpreendido já não conseguia ficar - Com vontade d eir dar um passeio? - Ironizei. Não estava no melhor dos humores. 

Fiquei assustada quando o ouvi falar mas não o vi logo de imediato. Ele estava meio escondido, atrás de uma árvore. - Eu vou-me embora - tentei soar o mais forte e decidida possivel, apesar da minha cara rosada e suada não fazer transparecer isso ou a minha indumentária não ser a melhor. Ao menos podia passar por sem abrigo, era um disfarce plausivel. Respirei fundo para ganhar coragem e comecei a procurar o melhor caminho para seguir.

Porquê que me importava? Toda a minha vida levara com lições precisamente sobre isto: de que o melhor que podia fazer por mim mesmo era nunca querer saber de mais ninguém. Estúpido, pensei porque ao ver aquela rapariga a lastimamente tentar afastar-se só conseguia pensar o quanto realmente me importava. - Sabes sequer onde estás? - Este era um subúrbio pobre. Duvidava que Hope alguma vez cá tivesse chegasse perto sequer. - Vais simplesmente tentar a tua sorte? Assim? Boa, ganhas o prémio para plano mais estúpido do dia. Da semana, até. 

- Não, não sei onde estou mas não me interessa, hei-de ir parar a algum lado. - endireitei-me o mais possivel e continuei a andar. uma coisa que a minha mae sempre me tinha ensinado, era a manter a minha dignidade e era isso que eu ia fazer. Eu podia parecer uma sem abrigo, pior até, podia parecer uma prostituta que tinha sido assaltada e espancada mas ali eu não iria ficar nem mais um segundo. Já tinha sido insultada o suficiente quando ele tinha fingido aqueles meses todos que se importava minimamente comigo